quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Rapidinha!

Já tinha postado hoje, mas não resisto: achei na internet esta pintura da moça Italiana com um fuso e um distaff*:



The Little Savoyards, 1878, Adriano Bonifazi. Italian, (1858-1914)

*Distaff é uma peça de madeira que se usava antigamente para enrolar a fibra ainda não fiada. Não consegui descobrir o nome em português - se é que existe.

E as histórias continuam surgindo...

É só revirar que aparece, né?

Quando tive a idéia de implementar aqui em Pouso Alegre um projeto de utilização de lã de carneiro eu parti dos seguintes argumentos:

- aqui faz bastante frio no inverno, e suéter de acrílico não esquenta nada!
- a geografia e a paisagem da região pedem a presença de carneirinhos.

Resumindo: eu não via motivo para não se criar carneiros por aqui (e um veterinário especializado confirmou isso); e não aceito que em outros países as fibras naturais sejam facilmente acessíveis, enquanto aqui a gente só encontra fios sintéticos nas lojas.

O desenrolar disso eu já contei aqui: consegui lã natural, bruta, no Rio Grande do Sul, comprei uma roca e passei a fiar minha própria lã (quem conheceu o blog depois disso pode ler essas postagens lá nos arquivos de dezembro, janeiro e fevereiro).

Mas eu não nasci para guardar as coisas só para mim. Sou do tipo que experimenta algo novo e não sossega enquanto não faz todos à sua volta experimentar também. Venço pelo cansaço. Esse trabalho com as fibras virou minha paixão, e comecei a tagarelar sobre ele com todo o mundo. A ponto de os amigos  me presentearem com miniaturas de carneirinhos! E conversa daqui e dali, as histórias começaram a surgir - de gente que lembra de pais ou avós criando carneiros, cardando lã, recheando acolchoados, fiando. Aqui na região. Não vou citar o link para nenhuma postagem em especial porque já falei de histórias assim várias vezes aqui no blog. O caso mais recente que contei, umas duas ou três postagens atrás, foi o da D. Zélia Scholz, artesã famosa de Curitiba. Ou eu achava que era de Curitiba. Na verdade ela é de Jacutinga, aqui pertinho, e cresceu aqui aprendendo seu ofício com a mãe e a avó. Ela é o principal exemplo vivo de que essa atividade já foi comum no sul de Minas.

E por que isso desaparece? Por que as tradições acabam? A gente se perde no emaranhado da vida moderna e se esquece de cultivar a habilidade manual, de respeitar os processos bem mais naturais e intuitivos que nossos ancestrais empregavam para obter os produtos de que precisavam. Como já falei aqui antes, vivemos na era do pegue-e-pague. Compramos tudo.

O projeto AVE LÃ! surgiu para reverter isso: Nós do núcleo de artesanato da ACAJAL pretendemos pesquisar e registrar os vestígios que ainda restam dessa atividade. E reativá-la! Estamos conversando com pessoas, fotografando, indo atrás. E as histórias vão surgindo.

Ontem uma aluna minha de patchwork veio para a aula aqui no ateliê, mas quem aprendeu algo fui eu: ela trouxe as cardas que eram da mãe e mostrou que, quando menina, observava muito bem os "grandes" enquanto processavam a lã:


D. Jesusa é de Borda da Mata, a 15 minutos daqui, e seus olhinhos brilharam enquanto demonstrava o trabalho que a mãe fazia. Infelizmente ela não sabe dizer o que foi feito da roca da família, e isso é um fato comum. O antigo não é preservado - é substituído pelo novo, e ponto final.

Já questionei muito o motivo da não preservação dessas relíquias... e recentemente encontrei uma resposta muito convincente no livro Design + Artesanato - O Caminho Brasileiro, de Adélia Borges. Em um capítulo entitulado "Histórico de um Isolamento", a autora expõe o resultado de suas pesquisas sobre esse tema, e comenta que em muitos países o design evoluiu a partir da tradição artesanal. No Brasil, ao contrário, esse processo significou a ruptura com o "saber ancestral": a herança dos tempos anteriores à chegada dos portugueses e oriunda de tantos fluxos migratórios foi simplesmente desconsiderada e desvalorizada.  Por que? Diz ela (grifos meus):

"O desejo deliberado de abolir o objeto feito à mão em prol do feito à máquina obedeceu  à visão de que a tradição da manualidade era parte do passado de atraso, subdesenvolvimento e pobreza, que o futuro promissor proporcionado pelas máquinas faria superar. Em nome do progresso e da desejada inserção do Brasil no concerto das nações desenvolvidas, melhor seria sepultar essas práticas empíricas e substituí-las pelo Novo, com N maiúsculo, redenção que seria trazida por um futuro pautado pelos princípios puramente racionais - a Ciência, a Técnica, a Metodologia."

Ui. Isso é muito triste. Felizmente, ainda segundo o livro da Adélia, há muitos projetos bacanas conduzidos por instituições e indivíduos que visam reverter esse pensamento. O AVE LÃ! não está no livro, mas tem a pretensão de ser um deles.

"AVE" é uma saudação, uma reverência. Nesse caso, reverência e respeito a uma matéria-prima que podemos voltar a ter aqui na região, e que é perfeitamente sustentável.

O Clube do Retalho de Pouso Alegre, outra subdivisão do Núcleo de Artesanato da ACAJAL, está organizando para o final de outubro a 4ª Mostra de Patchwork de Pouso Alegre. A exposição permanecerá aberta ao público durante 12 dias, e nesse período vamos apresentar o projeto AVE LÃ. Aguardem mais informações. 

Enquanto isso, vamos à caça de outras histórias. Obrigada, Jesusa, por compartilhar a sua conosco!

Até breve!

P.S.: Todo mundo, todo mundo mesmo, que lida com artesanato e trabalhos manuais devia ler o livro da Adélia. Imperdível. Agradeço ao artista plástico Domingos Tótora (sobre quem escrevi aqui) pela dica de leitura.