segunda-feira, 2 de abril de 2012

Tecnologia de ponta

A união faz a força. Lembro dessa frase desde sempre, e no caso das fibras a coisa é visível: o diâmetro de uma fibrazinha de lã de carneiro de boa qualidade mede aproximadamente 18 microns (1 micron é um milésimo de milímetro). Bem frágil, né? Junte várias e elas se tornam fortes. Mas as fibras são curtas, sem continuidade... como juntar várias e fazer uma corda, por exemplo? O homem das cavernas analisou e descobriu: torção nelas!

É isso mesmo: a foto nº 1 mostra um punhado de lã penteada, com as fibras paralelas; a foto 2 mostra como um puxãozinho, pelo comprimento, fez com que as fibras se separassem; e a foto 3 mostra as mesmas fibras torcidas: não adianta puxar - não separam!

Parece bobinho, mas foi uma grande descoberta: como amarrar e arrastar um mamute abatido sem ter algo forte como uma corda? Não se sabe se o uso das fibras retorcidas veio de tão longe assim no tempo, mas é certo: há incontáveis evidências arqueológicas, de todas as regiões, de que não é de hoje que o homem retorce as fibras para facilitar a vida.

Retorce como? Com as mãos, como fiz na foto; com a ajuda de pauzinhos: uma pessoa segura de um lado, outra de outro, a fibra é amarrada nas pontas, e cada pessoa gira o pauzinho em uma direção diferente.Voilà: um cordão torcido (nós artesãs utilizamos essa técnica com freqüência). Mas é difícil obter metragens mais longas assim, e aí o danado do homem (ou foi uma mulher?) improvisou com uma pedra e um pauzinho: criou o que viria a ser o fuso. Já mostrei neste vídeo uma mulher fiando com um fuso de pau e pedra; e aqui, mostrei outra fiando com um fuso moderno.

O fuso foi um grande avanço: permite que se fie uma grande quantidade, em qualquer lugar, sentado, de pé ou andando... Tanto que até hoje ele é largamente utilizado em culturas variadas: nas terras altas da América do Sul, na Turquia, no Tibete, nos Estados Unidos. Podem ser super simples ou elaboradamente lindos:
1. Fuso Navajo, grandão, precisa ser apoiado no chão;
2. Fuso atual, belamente trabalhado;
3. Fuso improvisado com um palito e um CD (funciona!);
4.   Jogo de fusos fabricado pelo "Seu João Cabelo", aqui em Pouso Alegre;

Os fusos estão por aí faz tempo - como mostra esta ilustração do antigo Egito:

Quando comecei a me interessar por fiação artesanal, só conhecia a palavra "spindle": não sabia o nome em português. Descobri um tempinho depois, graças a um site de Portugal. E aí foi aquela confusão: na minha cabeça, fuso era alguma coisa onde a Bela Adormecida espetou o dedo; achava que era uma agulha ou algo assim. Pesquisando mais, descobri que na verdade os fusos eram parte das primeiras rocas; eram de madeira e tinham uma ponta bem afiada (dá para localizar facilmente na foto):

E era nelas que eu queria chegar - nas rocas: hoje são vistas como antigüidade (apesar de serem usadas cotidianamente em muitas comunidades), mas já foram consideradas um tremendo avanço tecnológico! Há registros históricos de sua existência em todas as culturas - o mais antigo datando de 1237 (o que não significa que já não havia rocas antes disso)!

Fotos 1 e 2: ilustrações chinesas. O objeto redondo no centro da segunda ilustração é uma roca milenar!
Foto 3: sim, é o Ghandi fiando! A roca foi uma grande aliada em sua luta para tornar os indianos menos dependentes da Grã-Bretanha.

Imagine: alguém inventa um equipamento que gira, coloca torção na fibra e já vai enrolando o fio fabricado na bobina...!

Mas não foi tão rápido assim: como pode ser observado pelas fotos acima, as rocas passaram por muitas mudanças e melhorias ao longo dos séculos. A roca do palácio da Bela Adormecida provavelmente era uma walking wheel - ou "roca de caminhar": ainda não havia sido inventado um sistema para enrolar o fio à medida em que era fabricado: a fiandeira tinha de ir girando a roda com a mão, fiando e se distanciando da roca - daí o nome; quando tinha uma boa quantidade de fio, ia enrolando manualmente em um carretel e se aproximando da roca. Depois começava tudo de novo: fiando e se distanciando, enrolando e se aproximando... talvez uma dessas resolvesse meu eterno problema de ter preguiça de caminhar!

Lá pelo século XVI vieram as inovações que permanecem até hoje: uma é a invenção do flyer - uma peça onde é engatada uma bobina; ela gira junto com a roda principal, e faz com que o fio recém-formado seja enrolado na bobina ao mesmo tempo em que a torção é aplicada à fibra. A outra é a introdução do pedal - não era mais necessário girar a roda com a mão: dava para fiar mais rápido e com mais eficiência.

As rocas fabricadas hoje - acreditem, há muitos fabricantes nos EUA, Europa e Austrália, mas já falei disso aqui - são modernosas, coloridas, dobráveis, estilosas... mas na essência, o mecanismo é o mesmo de séculos atrás.

Curiosamente, a fiação artesanal exerce um apelo forte sobre um grande número de pessoas hoje em dia: há comunidades virtuais, seminários, workshops, festivais, campeonatos...E, mais curioso ainda: se no passado a atividade era vista como trabalho árduo relegado às mulheres (imagine ter de fiar o suficiente para produzir fios e tecer roupas para uma família inteira!), hoje fiar é hobby e os homens estão aderindo também. Vejam só apenas dois exemplos interessantes:

Vincent D'Aguanno é dono de uma loja de suprimentos para tricô e fiação nos EUA; em setembro último ele organizou um evento para angariar fundos para a campanha de prevenção do câncer de mama: uma maratona de fiação. O cara fiou durante 32 horas d-i-r-e-t-o, e o produto final foi rifado em prol da campanha. O total arrecado foi de US$ 3.817,00.

Ron Bloom é engenheiro aposentado e fã de futebol. Um dia levou a mulher, que adora tricotar, a um festival de fibras realizado em uma cidade mais ou menos próxima. Nunca tinha se interessado por esse universo, e foi apenas como motorista. Chegando lá, assistiu a uma demostração de fiação artesanal em um dos estandes, e caiu de amores à primeira vista. Voltou para casa, improvisou um fuso a partir de um CD, aprendeu, aperfeiçoou, comprou uma roca... e hoje fabrica todos os fios que sua mulher tricota. No sofá da sala, assitindo ao futebol em seu apartamento no 22º andar de um edifício em Manhattan.


Eu também caí de amores por esse universo - nem sei como ainda. Nunca fui a esses festivais, nunca tinha visto uma roca "em pessoa" até comprar a minha, nunca vi ninguém fiando...Só sei que fiar é mágico, meditativo, relaxante. E que todo mundo devia experimentar.

Quem foi mesmo que havia prometido postagens mais curtas? Eu, não!

Atá a próxima!