quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A Dama do Tricô

Essa semana eu recebi pelo correio um kit com DVDs que havia encomendado: "Knitting Workshop", com Elizabeth Zimmermann.

O que faz as pessoas se interessarem por esse material até hoje?



EZ, como é chamada no universo dos trabalhos manuais, nasceu na Inglaterra em 1910; estudou na Suiça e na Alemanha, testemunhou a luta pela sobrevivência financeira da família após a Primeira Guerra e foi morar nos EUA um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, acompanhando o marido alemão e nada queridinho dos nazistas. Tirando esse episódio, sua vida foi pacata e centrada. Elizabeth passou a vida educando uma família ("sem televisão em casa"), lendo muito, pintando quadros, tricotando e inventando. Ou "unventing", como ela gostava de dizer em seus vários livros publicados: ela dizia que quase tudo já foi inventado, mas você pode adaptar e aperfeiçoar - ou "unvent'.*

E o que ela "unventou"? Basicamente ela bolou jeitos mais eficazes e simples de se fazer quase tudo em matéria de tricô. Costurar as peças de um suéter não é um saco? Elizabeth criou o suéter sem costura, tricotado em agulha circular. Ficar trocando as cores do fio nas mãos é difícil? Elizabeth descobriu que é possível tricotar com as duas mãos ao mesmo tempo, uma cor em cada mão, para criar padrões. Não consegue encontrar uma receita de suéter que sirva para seu fio e sua tensão? Elizabeth criou o sistema EPS - ou "Elizabeth's Percentage System": não importa o fio ou a tensão, é só você definir o número de pontos para o corpo do suéter; o restante das medidas são porcentagens fixas desse número inicial. Receitas, nunca mais!

Além da inventividade, o talento para ensinar também estava presente: EZ parecia antecipar as dúvidas que as tricoteiras teriam na execução de suas instruções, e sabia como nos esclarecer e tranqüilizar. Houve mais de uma situação em que fiquei na dúvida, e li em seguida: "Eu sei que isso parece confuso, mas tenha fé e confiança, pois logo essa manobra fará sentido." E fazia. Seus livros me convenceram de que eu era capaz de fazer coisas que eu julgava impossíveis, antes - como meu primeiro par de meias. Ela prova por A + B que todo mundo pode fazer, sim.

Enfim, Elizabeth revolucionou o tricô e através de seus livros ofereceu aquilo que é o maior presente para qualquer artesão: liberdade de criação. Autonomia. Independência. Ela também advogava o uso da lã natural (opa, temos algo em comum!) e falava sempre em "resourcefulness" - palavra que já me inspirou uma postagem.


Mas não é por isso que seus livros são raros e venerados até hoje. Não foi por causa disso que sua família fundou a editora School House Press, adminstrada hoje por sua filha Meg Swansen; não é por isso que até hoje centenas de tricoteiras disputam vagas nos acampamentos de verão que Meg organiza (iniciativa de Elizabeth, anos atrás). E não foi , também, por causa do tricô que comprei os DVDs com todas as aulas que Elizabeth apresentou na TV americana.

O fato é que,  muito mais do que uma grande tricoteira e "unventora", Elizabeth Zimmermann era um ser humano iluminado, com um carisma e capacidade de comunicação formidáveis. Seus livros não são lições de tricô. São literatura. Ela ensina o que tem a ensinar, mas faz isso "conversando", tecendo histórias, salpicando ironias aqui e ali, entretendo. Nos dois primeiros livros ela fez isso sem intenção, mas em "Knitting Around" seu talento para escrever já era tão respeitado que as histórias foram incluídas no livro de propósito: capítulos intercalados com as lições, contando sobre sua infância, seus tempos estudando arte na Alemanha, o início do namoro e a escapada estatégica para a América quando o Nazismo ganhou força. Por que as tricoteiras haveriam de se interessar por essas histórias pessoais? Porque o bom narrador sabe tornar qualquer história interessante.

Tendo lido - e relido - todos os seus livros, imaginei: se é tão gostoso lê-la, como deve ser assistí-la? Encomendei o DVD e não estava enganada: pus a primeira mídia no notebook só para testar, mas de cara assisti a três episódios - 25 minutos cada. Não senti o tempo passar.

O material é simples: produção modesta, cenário mínimo, iluminação ruim, chiados, nada de maquiagem ou roupas atraentes à la Ana Maria Braga ... só Elizabeth, de rosto limpo e cabelos brancos, falando sem parar, demonstrando técnicas, um gato branco e preto na bancada e muitos novelos de lã ao redor. Só. Mas é o bastante.


A notícia da morte de Elizabeth Zimmermann, em 1999, ganhou obituário de destaque no New York Times. E em 2010, ano de seu centenário, o livro Knitter's Almanac foi relançado em edição comemorativa de grande sucesso. Inúmeros autores citam Elizabeth em seus livros. No Ravelry, comunidade virtual de tricô e crochê que já mencionei aqui no blog, há 185 projetos seus, todos avidamente tricotados por muita gente. Um deles, um casaco de bebê de construção modular, foi tricotado 18.652 vezes e deu origem a 1.878 postagens em blogs. 

Vou encerrar com uma frase sua: no finalzinho do livro Knitting Around - ou "Tricotando Por Aí" - ela faz um resumo de sua vida, dos altos e baixos, de haver sobrevivido a duas guerras mundiais, das dificuldades, incertezas e recomeços; e faz uma comparação com o tricô: If you drop a stitch, pick it up immediately. Traduzindo: "Se perder um ponto, recupere-o imediatamente".

Editoras brasileiras, que tal lançar esses livros por aqui, em português?

Até a próxima!

* un, em inglês, é um prefixo de negação - como o "des" em português: descarregar, descascar; no trocadilho de Elizabeth, "unvent" seria algo como "desinventar".

8 comentários:

Su disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Su disse...

Jane,
Se me permite, vou fazer das suas as minhas palavras:

* "Enfim, Elizabeth revolucionou o tricô e através de seus livros ofereceu aquilo que é o maior presente para qualquer artesão: liberdade de criação. Autonomia. Independência."

* "O fato é que, muito mais do que uma grande tricoteira e "unventora", Elizabeth Zimmermann era um ser humano iluminado, com um carisma e capacidade de comunicação formidáveis. Seus livros não são lições de tricô. São literatura. Ela ensina o que tem a ensinar, mas faz isso "conversando", tecendo histórias, salpicando ironias aqui e ali,entretendo."

É isso que penso a teu respeito. Tu não escondes nada quando nos ensina, pelo contrário, nos trás tudo de forma mais simples de ser executada.

Ensina de um jeito que nos torna independentes, não ensina só um projeto, ensina os fundamentos, o princípio de tudo, os segredinhos. Faz-nos ser capazes de olhar um projeto e saber como calcular e executar só olhando para uma foto.
Não há uma só vez que eu comece a fazer um novo projeto que eu não te agradeça em pensamento por tudo que me ensinastes. És sim um ser iluminado e tens o dom de ensinar.
Obrigada do fundo do meu coração!

Bjks,
Su

Jane Rotta disse...

Puxa, Suellen! Estou até comovida com esse teu comentário! Você faz falta aqui em Pouso Alegre, mas é muito saber que alguém teve aula comigo, depois partiu, mas levou essas sementinhas!

Grande abraço para você!!!

Anônimo disse...

Olá Jane. Tenho 2 livros da EZ. Também gostei muito deles. Gostaria de saber onde vc encomendou os Dvds.Já fiz algumas peças em trico, mas gostaria de me aprimorar. Antes comprava revistas em portugues, mas acho a maioria das receitas grosseiras, tenho preferido o Raverly. Abraços, Valéria.

Jane Rotta disse...

Oi, Valéria! Eu comprei os DVDs no eBay - aqui vai o link:

http://www.ebay.com/itm/ELIZABETH-ZIMMERMANN-KNITTING-WORKSHOP-2-DVD-SET-FREE-P-P-/271106645763?_trksid=p2047675.m1985&_trkparms=aid%3D444000%26algo%3DSOI.CURRENT%26ao%3D1%26asc%3D13%26meid%3D3626779230126005817%26pid%3D100012%26prg%3D1014%26rk%3D2%26sd%3D271084678773%26

Custaram baratinho e chegaram em apenas duas semanas!

Concordo contigo que muitas receitas a que temos acesso são grosseiras. Eu só fui aprender trico de verdade depois que passei a isar as receitas em inglês, que são realmente detalhadas, bem explicadinhas... Vou te procurar no Ravelry. Meu nome de usuário é janerotta. Abç!

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Mizia Camargo disse...

Menina... Me encantei com seus escritos. Sou uma tricoteira fã incondicional da EZ. O curioso é que "encontrei" você porque quero desesperadamente fazer patchwork. Descobri seu outro blog e do nada surgiu a referência a este post. Quando encontramos alguém - ainda que no mundinho virtual - com tantos interesses em comum e que consegue de forma simples traduzir os mesmos sentimentos que já experimentamos... É prá guardar no coração de verdade. Parabéns pelos blogs e pelas nossas paixões: paninhos, linhas, lãs, fiação, mais criatividade e menos comercialismos de nossa arte!

Jane Rotta disse...

Oi, Mizia! Eu é que me encantei com seu comentário! Obrigada! Fico muito contente também quando descubro pessoas que se interessam por esse universo! Vamos manter contato! Grande abraço!